quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Pau puro

Matéria da "Folha" de ontem, cabando com o movimento Em Pé:

Sorriso amarelo
Festival de stand-up comedy que lota um teatro de SP é um pacote mal embrulhado de humor de TV e muita redundância; só Angela Dip se salva, com "La Putanesca"

Pedro Molina/Divulgação

Marcela Leal, que está no ruim "Confissões de Acompanhantes", um dos espetáculos da 1ª Mostra Paulista de Stand-Up Comedy

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA


Rir é o melhor remédio e, em tempos de crise, o riso fácil pode valer ouro. Foi o que provou a primeira semana da 1ª Mostra Paulista de Stand-Up Comedy, em que os seis espetáculos programados lotaram o teatro Nair Bello, no shopping Frei Caneca, em São Paulo.
O evento reúne comediantes brasileiros que praticam o gênero consagrado pelos norte-americanos (o que explica o uso da expressão em inglês) em que um comediante solitário, de pé, diante de um microfone, sustenta com uma enxurrada de piadas ininterruptas a atenção do público. A proposta é "formar uma plateia atenta e assídua", mas o que se vê é um pacote mal embrulhado de humor televisivo com doses alucinantes de redundância.
Durante o século 20, uma legião de comediantes norte-americanos formatou o modelo, alguns deles radicalizando nos temas tratados e ameaçando a ordem pública -caso de Lenny Bruce, que no início dos anos 60 chegou a ser preso por suas performances e foi perseguido até morrer, em 1965.
No Brasil, se ignorarmos os comediantes do Teatro de Revista, que desde o fim do século 19 faziam números solo na frente da cortina fechada para a troca de cenários, o pioneiro no formato foi José Vasconcelos, e comediantes como Chico Anysio e Jô Soares cansaram de lotar teatros com o gênero. Com a internet e o YouTube, uma nova geração lançou-se nessa prática, e hoje vive-se uma febre de consumo desse produto. Foi, provavelmente, pelas oportunidades desse mercado aquecido que se organizou a mostra.

"Confissões"
A estreia foi com "Confissões de Acompanhantes", espetáculo feito à maneira do stand-up. A partir de criação de Newton Cannito e Roberto D'Avila, quatro atrizes fazem-se de prostitutas, alternando-se em solos diante do microfone.
É uma solução problemática, visto que, das quatro, só uma (Marcela Leal) é praticante do gênero. Curiosamente, seu desempenho é o mais fraco, considerando-se sua dificuldade em fazer o público rir. As outras três (Guta Ruiz, Maíra Dvorek e Rachel Ripani) viram-se como podem, sendo que a mais talentosa, Dvorek, é a que obtém os melhores resultados.
"Nocaute", de Marcelo Mansfield, é um clássico do stand-up brasileiro. Mansfield vem desenvolvendo essa especialidade desde meados da década de 80. Não deixa de ser melancólico vê-lo abandonando o estilo elegante e sutil, de quando surgiu na cena cult paulistana, para abraçar uma escatologia mais rasgada.
O stand-up pode ser demolidor quando há uma exposição sincera dos próprios demônios e um exame cáustico das misérias humanas. Mansfield chega perto, mas logo descamba para comentários banais sobre "personalidades" baratas da TV.
"Hã?!" trouxe o curitibano Diogo Portugal, criador do Clube da Comédia e um dos mais renomados entre os humoristas que surfam na atual onda. De uma geração intermediária, entre Mansfield e os mais jovens, seu sítio na internet (diogoportugal.com.br) é um campeão de visitas. Mesmo respeitando o princípio da autoironia, ele opta pela mediocridade na busca do riso farto. Sustenta-se com velhos truques de provocação do público e piadas sujas de homossexuais que soam anacrônicas. O máximo de transgressão que consegue é trair o gênero e tocar no violão, ao final, uma canção jocosa sobre o amor gay.
"Papo Furado" traz Fernando Caruso, um dos praticantes mais jovens que, na combinação com aparições em humorísticos de TV, vem atraindo público aos teatros para vê-lo ao vivo. Ator premiado no Rio e integrante do grupo carioca Comédia em Pé, decepciona. Aparentemente despretensioso, centra sua apresentação num desfiar de maledicências sobre nomes da MPB, o que soa arrogante e oportunista. Não que o humor do gênero não tenha que ser corrosivo, mas, de preferência, a partir das próprias mazelas. Seu espezinhar de celebridades soa como um chutar cachorros mortos.
"Fora do Normal" dá sequência à exibição dos jovens atores que combinam TV e teatro para popularizar o stand-up. Fábio Porchat é um talento histriônico. Sanguíneo e quase histérico, usa mais o corpo que o colega do Comédia em Pé. Seu desempenho é mais interessante porque trabalha pouco com baixarias escatológicas e muito com experiências no cotidiano, de que se serve com inteligência. De modo geral, encarna o espírito do stand-up, ou seja, um olhar aguçado que transforma tudo o que toca em piada, ainda que aos berros.

Estranha no ninho
"La Putanesca", de Angela Dip, traz uma atriz experiente em espetáculos solo, que evoca a tradição de performers americanas, como Karen Finley, Peggy Shaw e Penny Arcade. Partindo da autoexposição desabrida para ir além da pura piada, transgride os padrões do gênero e os transborda. Concede à temática sexual os trocadilhos habituais, mas o faz de um ponto de vista feminino particular, quase lírico. O público chega a estranhar, mas acaba se entregando ao riso, cativado pela autenticidade do que se apresenta. Permitindo encenar para além dos estreitos limites formais da stand-up comedy, com marcações de luz e de som, Dip é quem melhor atualiza o espírito deste formato.
De fato, a 1ª Mostra Paulista de Stand-Up Comedy alterna diferentes estilos de incitar risadas de modo rasteiro e despertar os piores instintos das plateias. Mais honesto seria admitir que, a despeito do sucesso de bilheteria, ela deforma públicos para o teatro.

Nenhum comentário: